Não será muito vistosa a história que vou contar. Nem todas as histórias podem exibir, para regalo de quem as lê, o mesmo aparato de aventuras, umas a seguir às outras, como uma caixinha de mágicas donde saem fieiras de lenços multicolores, pombas que voam e coelhos que saltam. Há também as histórias simples que parece não terem nada para contar. Nascem sem porquê e vão crescendo, devagarinho, como uma árvore - exactamente como uma árvore -, que se abre em ramos que ninguém viu despontar. Uma vez acabadas, estas histórias oferecem uma sombra fresca, uma pausa de sossego a quem delas se aproximou. São histórias pouco ambiciosas.
Esta contou-me o Filipe, um amigo meu que vive numa casinha modesta, de um só piso, com uma janela virada para um pátio de calcetado irregular, pátio que tem, no meio, uma árvore grande. Outras janelas de outras casas iguais olham para o pátio onde reina, única e grande, a árvore de ramos firmes, logo coberta de folhinhas novas ao primeiro bafo da Primavera.
- Há mais de trinta anos que conheço estes sítios - disse-me o Filipe, debruçado da sua janela. - Nasci aqui. Neste pátio, dei os primeiros passos. Foi nestas pedras que, pela primeira vez, esfolei os joelhos. Não chegam os automóveis a este pátio. As únicas rodas que conheceu foram as da bicicleta do vizinho Júlio, um que trabalhava na construção. Às vezes, quando estava mais de maré, o que raramente acontecia, emprestava a máquina à rapaziada. Tanto trambolhão.
É um pátio de gente pobre, quase um beco, com tanques de lavar a roupa à beira de cada porta, um chafariz e janelas que a gente nem chega a perceber se dão do pátio para as casas ou das casas para o pátio. Este pátio, fique o meu amigo sabendo, vale por um livro aberto, onde qualquer pessoa que o conheça de perto pode ler histórias, um nunca acabar de histórias para todos os gostos. Vê aquela árvore? Pois tem uma história que merece a pena ouvir. Ninguém melhor do que eu, que acompanhei todos os passos da sua vida, lha poderia contar. Ora escute.
Há cerca de trinta anos, era eu um garoto, com os cotovelos apoiados no parapeito desta mesma janela, a olhar para a paisagem sempre igual e triste do pátio, quando reparei por acaso numa haste que despontava da terra, numa falha do empedrado. Erva daninha e rasteira é o que mais há, neste pátio. Uma autêntica praga. Se não nos acautelamos, até as urtigas são capazes de nos entrar em casa...
Mas aquela haste, que segurava umas folhinhas trémulas, não se parecia nada com as verduras atrevidas que infestavam a área. Desci à rua e fui ver de perto. Era um arbusto ou, para sermos precisos, uma árvore-bebé, mal saída do berço. Fiquei espantado e enternecido.
Como teria germinado a semente, por que milagre, naquele solo pobre, conseguira fixar-se a raiz, a romper a terra, em busca de luz, e espigar o tronco tenro da arvorezinha? Ainda que débil, a minha descoberta e, desde então, minha protegida, mostrava-se muito disposta a não se deixar vencer.
Tudo estava contra ela. A luz não era abundante, as pedras em volta ameaçavam estrangular-lhe o crescimento... e as pessoas andavam e andam sempre apressadas, com a cabeça no ar e bem longe do que se passa rente ao chão que pisam. Calculem qual não foi o meu pavor quando, dias depois, dei com a minha mãe e uma vizinha a espalharem sal sobre as pedras, mesmo junto à minha árvore.
- Gasta-se um bocado de sal, mas não há outro remédio para nos vermos livres, por uns tempos, destas malditas ervas - dizia a vizinha.
Custou-me a convencê-las... O meu principal argumento, em favor da árvore, foi o de que ela acabaria por não conseguir sobreviver.
Afinal, sempre conseguiu. Tive de avisar os meus amigos e de lhes pedir que não corressem naquele sítio. A princípio não me deram ouvidos, mas depois acabaram por se tornar meus aliados. Criámos uma ordem ou clube dos protectores da árvore e construímos uma pequena palissada à volta da nossa protegida. O Arlindo chegou mesmo a escrever, num letreiro espetado num pau, os seguintes dizeres:
Perigo de morte para a árvore, claro.
Veio o Inverno e todos nós, os do pátio, receámos pela arvorezinha. A haste sem folhas parecia ter secado. Para a abrigar das grandes bátegas de água e do granizo de Janeiro, improvisámos, com uma armação de arame e o chapéu-de-chuva velho do meu pai, um toldo protector. Fazíamos isto com mil cuidados embora, intimamente, cada um de nós já não acreditasse que fosse possível salvá-la.
Imagine a minha alegria ao ver-lhe uma folhinha verde, quase branca, a apontar o céu limpo de Março. Acredite ao não, houve festa no nosso pátio.
O fim da história já a sabe o meu amigo. Está ali, alta, frondosa, uma força de vontade em forma de tronco. Fomos nós a protegê-la; é agora ela que nos protege. Oferece-nos a sua sombra, alinda-nos o pátio... É a nossa rainha, o nosso parque, o nosso jardim, a nossa vaidade e é ela a primeira a avisar-nos quando chega a Primavera.
Texto de António Torrado, em A escada de caracol, Edições ASA, Setembro de 2007
CUIDADO COM A ÁRVORE.
PERIGO DE MORTE.
Perigo de morte para a árvore, claro.
Veio o Inverno e todos nós, os do pátio, receámos pela arvorezinha. A haste sem folhas parecia ter secado. Para a abrigar das grandes bátegas de água e do granizo de Janeiro, improvisámos, com uma armação de arame e o chapéu-de-chuva velho do meu pai, um toldo protector. Fazíamos isto com mil cuidados embora, intimamente, cada um de nós já não acreditasse que fosse possível salvá-la.
Imagine a minha alegria ao ver-lhe uma folhinha verde, quase branca, a apontar o céu limpo de Março. Acredite ao não, houve festa no nosso pátio.
O fim da história já a sabe o meu amigo. Está ali, alta, frondosa, uma força de vontade em forma de tronco. Fomos nós a protegê-la; é agora ela que nos protege. Oferece-nos a sua sombra, alinda-nos o pátio... É a nossa rainha, o nosso parque, o nosso jardim, a nossa vaidade e é ela a primeira a avisar-nos quando chega a Primavera.
Texto de António Torrado, em A escada de caracol, Edições ASA, Setembro de 2007